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Maio / 2019
Em julho de 2010, a professora Alexandra Bilar Henrique, à época com 31 anos, dava aulas em dois períodos em uma escola pública na cidade de Cajamar, na Grande São Paulo. Na hora do almoço entre as jornadas, ela convidou uma amiga para ir a um restaurante próximo ao trabalho.
Na fila do self-service, Alexandra disse para a colega que jogaria o chiclete que estava mascando no lixo, e pediu para que ela passasse à frente.
"A gente chegou na balança para pesar a comida quando uma funcionária se aproximou para abastecer o réchaud com álcool do nosso lado. Mas ela não percebeu que ainda tinha fogo. Foi quando houve uma explosão. A garrafa com álcool pegou fogo e, no susto, a mulher jogou na gente. Eu fiquei internada por 21 dias. Nos últimos 9 anos, fiz 35 cirurgias", disse em entrevista à BBC News Brasil. A amiga de Alexandra morreu depois de 37 dias de internação.
Inspirada em sua própria história e nas dificuldades que enfrentou após deixar o hospital, Alexandra fundou a Associação Nacional dos Amigos e Vítimas de Queimaduras (Anaviq), ONG criada e gerida por vítimas de queimaduras do Brasil. Hoje, o grupo hoje conta com 145 pessoas que se feriram em acidentes domésticos, no trabalho e até em tentativas de suicídio.
Um dos associados é um adolescente que tentou se matar aos 12 anos após sofrer bullying dos amigos na escola.
"Fiquei desempregado e tive de tirar meu filho da escola particular onde ele estudava e matricular na pública. No colégio novo, ele começou a sofrer bullying por ser um menino muito educado e bonzinho. Davam tapas na cabeça, cuspiam na cara dele e faziam muitas ofensas. A gente não sabia disso, nem percebemos nas nossas conversas diárias", conta o pai do jovem e motorista de aplicativo, que não será identificado para preservar o adolescente.
A humilhação sofrida diariamente levou o menino à tentativa de suicídio, diz o pai.
"Numa manhã, ele despejou álcool no corpo dele todo e riscou um fósforo enquanto esperava a van para a escola. Ouvi os gritos no quintal e corri o mais rápido que consegui. Quando vi aquela bola de fogo, abracei meu filho enquanto tentava rasgar a roupa dele. Minha esposa foi mais rápida, ligou a mangueira e apagou o fogo, mas a desgraça já tinha acontecido", relata o pai do adolescente, hoje com 15 anos.
O garoto teve queimaduras de 2º e 3º grau em 45% do corpo e ficou internado durante 60 dias no Hospital das Clínicas, em São Paulo - 45 deles em coma. Ele disse que a associação é essencial para a troca de experiências e para melhorar a autoestima do filho.
"Os membros têm experiência com todos os tipos de queimaduras, sabem reconhecer os melhores produtos e onde encontrar mais barato e isso faz toda a diferença. Os médicos são excelentes, mas não têm a mesma experiência de quem passa pelo tratamento", afirmou o pai.
De acordo com o Ministério da Saúde, cerca de 1 milhão de pessoas sofrem queimaduras anualmente no Brasil. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem 44 unidades especializadas em queimados em todo o país. Segundo a pasta, em 2018 mais de 224 mil pessoas receberam atendimento ambulatorial por conta de queimaduras, e 25.947 foram internadas.
Segundo Alexandra, uma das maiores barreiras é encontrar médicos especializados, receber dicas de pomadas e de onde encontrar medicamentos mais baratos. Ou simplesmente ser ouvido.
A recuperação do trauma e a ressocialização são apontados por ela como primordiais para resgatar a autoestima de uma vítima de queimadura. O momento em que a queimadura ocorre fica gravado na memória. E Alexandra se lembra de cada detalhe de seu acidente.
Depois da explosão, a professora conta ter corrido o mais rápido que conseguiu em direção à saída do restaurante. Ela relata que a impressão era de que todo o ambiente tinha ficado sem som.
Com o corpo em chamas, Alexandra arrancou sua bolsa e parte de suas roupas enquanto corria. Nesse momento, ela foi derrubada.
"Um homem me jogou no chão, pulou em cima de mim e usou a camiseta dele para apagar as chamas. Só me lembro que juntou muita gente em cima de mim. As pessoas me olhavam com espanto e comentavam sobre os ferimentos. Eu me lembro que uma delas disse que 'a outra estava pior', ao falar da minha amiga. E eu ainda tentando entender o que tinha acontecido. Eu pensei que morreria", lembra.
No desespero de tentar pedir socorro para alguém da família, ela colocou a mão no bolso direito de sua calça para pegar o celular.
"Isso causou um grande dano na minha mão porque ela estava queimada e raspou no tecido jeans. Fiquei cinco minutos no chão enquanto aguardava o resgate, com muitas pessoas ao meu redor falando sem parar. Eu quase não sentia os ferimentos. Quando fui colocada na ambulância, parecia que eu estava sendo colocada num forno. Eu gritava de dor. Jogavam soro nas queimaduras para aliviar. Eu pedia para jogarem mais nas pernas e no meu polegar. Era desesperador", relata a professora.
Ao chegar ao pronto-socorro, a professora não enxergava, mas ouviu a funcionária do restaurante, que também teve ferimentos nas mãos e braços, se culpando pelo acidente. Ainda no mesmo dia, a professora foi transferida para um hospital de seu convênio, em Cajamar. Lá, uma cirurgiã plástica recomendou que ela fosse transferida para um hospital de referência para queimados em Jundiaí, no interior de São Paulo.
"Essa mulher foi colocada por Deus no meu caminho. Ela fez o primeiro atendimento de maneira muito eficiente. Pedia para a equipe dela arrancar minha pele sem dó. No dia seguinte, ela mesma conseguiu uma vaga no hospital de referência e uma ambulância para me levar. Ela foi perfeita", resume Alexandra.
Durante as três semanas em que permaneceu internada no hospital especializado, Alexandra recebeu poucas notícias de Graciene.
Enquanto Alexandra se recuperava bem, a companheira de trabalho tinha sofrido graves queimaduras nas vias aéreas, que dificultavam a recuperação e exigiam o uso de aparelhos para respirar. Graciene morreu duas semanas após Alexandra deixar o hospital.
Durante o tempo internada, a maior preocupação de Alexandra era se acalmar e cuidar dos ferimentos para voltar para casa com menos sequelas. Durante esse tempo, ela não teve contato com seu maior inimigo pós-alta: o espelho.
O hospital onde ela ficou internada não tinha espelhos. A primeira vez em que ela viu sua própria imagem depois do acidente foi logo após receber alta, quando passou na casa onde a irmã dela estava hospedada na cidade. Mesmo sabendo que estava com as mãos, rosto, barriga, pescoço e perna queimados, a surpresa foi inevitável.
"Quando eu entrei no banheiro, abri a porta e dei de cara com espelho. Minha pressão caiu e eu quase desmaiei. Eu estava toda vermelha e muito magra. De lá para cá, é um desafio lidar com a minha própria imagem", afirmou.
Alexandra diz que um dos principais desafios das pessoas queimadas é lidar com a mudança na imagem causada pelas cicatrizes. Alguns veem como uma marca de superação, que muitas vezes representa uma vitória contra a morte. Mas a grande maioria faz cirurgias plásticas para escondê-las.
"Ela não me impede de viver, mas eu sempre uso lenço no pescoço e maquiagem para esconder o máximo que posso. Eu tento evitar chamar a atenção porque há um grande desconforto de ser abordada toda hora. Sempre alguém pergunta o que aconteceu ou diz 'nossa, coitadinha de você'", afirma a presidente da Anaviq.
Ela diz que boa parte das perguntas são insensíveis e que as pessoas não se dão conta de que estão fazendo o outro se sentir pior. Para ela, o mais importante é que o outro saiba que a pessoa passa por um momento delicado.
Outra função da associação é orientar pessoas sobre onde podem encontrar tratamento após deixar o hospital.
"Isso até existe no Hospital das Clínicas de São Paulo, mas a fila demora pelo menos um ano. Nesse tempo, a cicatriz hipertrofia e você não consegue mais levantar um braço ou esticar o dedo", explica Alexandra.
Ela disse que esse tratamento pós-operatório é importante para que não haja sequelas mais graves e o paciente consiga retomar sua vida, inclusive em seu emprego.
Depois do acidente, Alexandra passou dificuldade financeira por conta do alto gasto com remédios, pomadas, curativos e frequentes idas ao médico. Custos além do auxílio-doença que recebia. Para recuperar o dinheiro gasto com o tratamento, ela abriu um processo contra o restaurante.
Depois cinco anos, três audiências e um impacto emocional que quase a levou à depressão, a professora fez um acordo e recebeu R$ 100 mil do dono do comércio. A família da amiga morta no mesmo incêndio recebeu R$ 30 mil.
A ideia de criar a Anaviq surgiu durante uma conversa entre Alexandra e o médico dela. Sem condições de continuar seu trabalho como professora, ela aceitou a sugestão para acolher as novas vítimas que chegavam ao hospital.
"Eu percebi que não havia quase nenhuma informação disponível, então passei a ensinar automaticamente o caminho para outras pessoas. Passei a criar grupos no Facebook com médicos e pessoas queimadas. Em pouco tempo, começou a chegar gente de outros Estados e percebi que eu estava cada vez mais envolvida", afirmou.
Em setembro de 2017, o grupo fez sua primeira reunião. Logo, começou a crescer, ganhar visibilidade e fez uma parceria com a universidade Anhembi Morumbi e com o escritório de advocacia Siqueira Castro. Os membros da associação se reúnem uma vez por mês, mas se falam todos os dias pelo WhatsApp.
O reconhecimento aumentou no ano passado, quando a associação participou do Congresso Brasileiro de Queimaduras no ano passado. O evento reuniu em Foz do Iguaçu, no Paraná, centenas de especialistas em queimaduras, como médicos, fisioterapeutas e psicólogos de diversos países.
Segundo ela, há casos de pessoas queimadas em situações aparentemente seguras, como o manuseio de álcool em gel e a impermeabilização de estofados. Neste caso, a explosão é causada por gases inflamáveis liberados por alguns tipos de produtos aplicados no tecido. Também são comuns acidentes envolvendo crianças que mexem em panelas no fogão.
Hoje, a Anaviq atende a 145 pessoas de maneira voluntária, sem receber nenhum apoio financeiro. Nove delas são casos de queimaduras provocadas em tentativas de suicídio - a maior parte cometida por mulheres.
Alexandra se aposentou e vai se dedicar integralmente à associação a partir de agora. Ela iniciou o processo para criar o CNPJ e poder receber doações.